Analistas de mercado e até membros do governo Lula olham com preocupação os efeitos de uma combinação de políticas às contas públicas: a vinculação de benefícios ao salário mínimo e a política de valorização deste piso que foi retomada pela gestão federal atual.
Rogério Nagamine Costanzi, doutor e especialista em Previdência, detalhou o cenário em entrevista à CNN. O especialista destacou o fato de que dois a cada três benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) não podem ser pagos abaixo do mínimo.
O Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que representa cerca de 44,4% das despesas totais do governo, tem 60% de seus benefícios atrelados ao mínimo, enquanto o Benefício de Prestação Continuada (BPC) tem 100% dos seus pagamentos estão vinculados a este piso.
Acontece que desde o início do governo Lula, a gestão federal adota uma política de valorização do salário mínimo, a fim de garantir que seu valor cresça acima da inflação. Na prática, o mínimo é reajustado anualmente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) somado à variação do Produto Interno Bruto (PIB).
A regra criada pelo governo Lula virou lei em 2012 no governo Dilma e expirou em 2019.
O balanço mensal mais recente de receitas e despesas do governo retrata a preocupação dos quadros: os gastos com o RGPS tiveram crescimento real de 17% em abril, na comparação com o mesmo período de 2023; o BPC variou 18,9% para cima.
Com impacto relevante destes gastos, as despesas avançaram 12,4% em abril, enquanto as receitas cresceram 7,8%. Estes números estão no radar de áreas técnicas do governo, segundo apuração da CNN, mas a avaliação interna é de que, visto o impacto social deste tipo de desvinculação, o debate é politicamente sensível.
Nagamine Costanzi vai além e afirma que a medida parece hoje “politicamente inviável”. O especialista relembra que há debate sobre se o parágrafo segundo do artigo 201 da Constituição é cláusula pétrea.
“Nenhum benefício que substitua o salário ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo”, diz o trecho.
Economista da ASA Investiments e ex-Tesouro, Jefferson Bittencourt reiterou a sensibilidade do tema em entrevista à CNN. O economista disse que o governo terá de empenhar capital político para realizar o ajuste fiscal pelo lado dos cortes de despesas.
“O problema é que não existe omelete sem quebrar os ovos”, disse.
Bittencourt ainda contestou os reajustes acima da inflação para estes benefícios previdenciários. De acordo com o ex-secretário, a “lógica” da correção que soma os avanços de INPC e PIB é compensar o trabalhador pela inflação somada ao avanço da produtividade da economia.
“Isso é razoável porque o trabalhador que está na ativa precisa ganhar a correção monetária mais ganhos de produtividade que teve. Mas isso não faz muito sentido quando se fala de benefício social ou previdenciário, porque as pessoas que os ganham não têm mais contribuição à produtividade”, explicou.
Caminhos para o ajuste
Na visão de Nagamine Costanzi, há caminhos menos sensíveis para tornar mais saudáveis as contas previdenciárias, como a aposentadoria rural e o Microempreendedor individual (MEI) — que na visão do doutor contam com distorções consideráveis.
“No caso da aposentadoria rural, as mulheres se aposentam aos 55 anos. Dificilmente verá uma pessoa nesta idade sem capacidade laboral. No caso do MEI, a contribuição é de 5% do salário mínimo, sendo a modalidade é mais utilizada pela parcela mais rica da população. Haverá um déficit enorme”, disse.
Alvos de crítica por implementar ajuste fiscal somente com o aumento da receita, membros do governo federal sinalizam que são escassos os caminhos para cortar gastos sem gerar impactos sociais relevantes.
Jefferson Bittencourt volta sua crítica ao aumento de gastos gerado no início do mandato, com a PEC da Transição, que pagou o aumento do valor do Bolsa Família, entre outras despesas. Para o economista, o governo Lula poderia ter sido mais meticuloso naquele momento, o que evitaria a necessidade de ajuste brusco atual.
“Poderia ter ajudado te uma reflexão mais robusta sobre a trajetória de gastos que veio a partir da PEC da Transição. Apontar caminhos agora ficou muito mais difícil”, completou.